É um espetáculo radical pois existe ali a escolha de algum extremo que ainda não se consegue sondar.
Como acontecimento, como relação entre seres, é estranho: essa maneira seca de agir dentro daqueles quadrados de madeira, formando imagens como num jogo de tabuleiro e depois desfazendo-as. É também desumana a forma de dizer o texto, as palavras páiram entre o cruel, a ironia e a displicência com o narrado, não sei se por uma displicência real de todos os atores (o que acho difícil) ou por uma radicalidade estética vinda de fora. Na verdade essa forma de agir dos atores tornou tudo muito sombrio, digo sombrio para falar dessa penumbra que não dá um limite preciso ao que quer que seja, que torna tudo incerto, indefinível. Os personagens não respiram, não transpiram, parecem os fantasmas do Nô mas sem o brilho da máscara, da roupa ou da voz. Posso dizer que existe apenas um personagem no espetáculo, mas eu nunca vi o corpo dele, deve ser um corpo feito de sombra, deve ser um duplo de todos os atores, um duplo que os manipula. Por isso, a única respiração que existe é a dele, uma respiração Una que liga os corpos, o que faz com que a atmosfera vaporize ou se torne aquosa, e isso dificulta a nossa respiração, assim como não se respira bem numa sala cheia de vapor, ou então numa sauna (onde se tem a sensação de relaxamento excessivo chegando a uma espécie de sono), mas por outro lado cria um outro Tempo que nos rodeia e outra forma de estar no espaço.
A música, associada à essa movimentação, a essa respiração e a esse tempo me induziu a imagens cósmicas, essas de galáxias girando e suas órbitas desenhadas e aqueles desenhos alquimistas onde as coisas são sempre muito misteriosas, insondáveis.
Não posso destacar claramente os afetos que vivi ao assistir o espetáculo, mas posso dizer que assisti a tudo com os olhos apaixonados de um biólogo que vê uma espécie estranha, e isso não é nem de longe ruim já que me abre outras rotas de percepção de mundo e dessa forma outras formas de sentir, e talvez por isso mesmo é que não possa falar sobre meus sentimentos, sendo todos novos e sem nome. Eu acredito nessas coisas porque não acredito nessa forma corrente de se encarar a vida: automática, complacente, conciliatória. Dessa forma, não o vejo como um espetáculo para quem quer sentir igual, mas para quem se arrisca a sentir diferente. É um baque seco, e quem quiser que o ouça, assim como eu quase não ouvi, mas senti a vibração final quando fiquei só junto com todos no cemitério e a luz apagou com um blam do instrumento estranho.
Abraços,
Daniel Guerra
Formado em Direção Teatral pela UFBA
Diretor Artístico do Grupo Alvenaria de Teatro
Diretor Artístico do Grupo Alvenaria de Teatro
Depois de muitos anos sem ver o Piollin em cena (não vi A Gaivota) e ainda pairando na minha memória visual e emotiva (risos) o Vau da Sarapalha (vi umas cinco vezes entre 93 a 95 aqui em Salvador). Fiquei muito feliz em revê-los em Retábulo, no Teatro Vila Velha, aqui em Salvador.
ResponderExcluirRetábulo traz a marca do Piollin e da direção de Luiz Carlos Vasconcelos: o corpo e voz, imagens, o cuidado estético e o ator no centro de tudo. Uma poética da narrativa, algo muito próximo do que é abordado atualmente pelo Pós-dramático de Hans Thies Lehmann, existe um texto, mas o que importa é o que o encenador faz dele. A presença do coro, o desdobramento dos atores em narradores, também é uma característica citada por Lehmann como sendo uma possibilidade do teatro Pós- dramático. Sinto que falta um equilíbrio na dramaturgia da adaptação entre a narrativa do coro e dos personagens com as cenas. Em muitos momentos as imagens me atraíram mais do que a narrativa. Também acho que o coro podia, mesmo com unidade, buscar diferentes maneiras de falar suas narrativas, a função do coro desde sua origem é do inconsciente coletivo, apontar, criticar, satirizar, ironizar, anteceder algum fato, etc. Enfim, muito feliz em revê-los e também pela adição de novos atores ao grupo.
Sucesso sempre e muita luz iluminando as escolhas e os caminhos de vocês!
Cristiane Barreto
Arte-educadora e diretora teatral
Salvador - BA